Pelo segundo ano consecutivo, Fabiana Lima é crítica do Festival Guarnicê de Cinema. Nesta edição, ela produzirá as críticas dos seis longas-metragens que compõem a programação do festival. Confira a avaliação de “Eu Moro em Qualquer Lugar”, de Marcio Coutinho, em exibição hoje (15) no Teatro João do Vale (Rua da Estrela, 283) às 19h50. A obra também ficará disponível de modo virtual a partir das 17h30 até às 18h de sexta-feira(16).
O Festival Guarnicê de Cinema
Quarto mais longevo festival de cinema do país, o Guarnicê celebra o audiovisual maranhense e nacional há 46 anos. Promovido pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), o festival ocorre entre os dias 09 e 16 de junho. O Guarnicê tem patrocínio da Equatorial Energia, Museu da Memória Audiovisual do Maranhão(MAVAM) e do Governo Federal por meio do Banco do Nordeste.
Conta também com o apoio da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão (ALEMA), Fundação Sousândrade, Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), Eduplay, Secretaria de Estado da Educação (SEDUC), Centro Cultural do Ministério Público, TV UFMA, Rádio Universidade, Secretaria Municipal de Educação (SEMED), SESC, Associação Maranhense de Desenvolvedores de Jogos, Bulldog, Gráfica A5, Mar Doce, Teatro João do Vale e Teatro Arthur Azevedo.
Confira a crítica:
“Como crítica, é difícil não se deixar levar por filmes cujos temas me atravessam. Ser mulher em uma sociedade cujo patriarcalismo é estrutural e dominante, proporciona que obras como Eu Moro em Qualquer Lugar desperte sentimentos muito próprios à minha vivência em sociedade e que essa emoção acabe por tomar conta da minha experiência, permitindo a criação de um vínculo com a narrativa muito mais profundo do que talvez um homem, na mesma função que eu, não criaria – nem com a mesma profundidade.
Esse filme me traz muitas questões da minha vivência na área da crítica, quando eu me recordo que já ouvi de muitos colegas, em sua maioria homens, que a importação da vivência pessoal e visão de mundo para uma crítica de cinema faria parte de uma atitude um tanto anti-crítica, cuja razão teria de ser dominante. Em senso comum, é até plausível que a maioria das pessoas ainda acreditem que uma crítica precisa seguir necessariamente lógicas objetivas na maior parte do tempo, mas eu acredito o contrário. E também acredito que todo crítico deveria entender o justo contrário disso.
Acredito que a crítica, enquanto um texto que nasce a partir de uma experiência tão particular, a escrita em primeira pessoa seria a que me cabe. Portanto, filmes cujos temas não apenas me tocam como me atravessam, por inteiro, devem sim ser escritos em primeira pessoa. Nestes tipos de texto, a minha visão de mundo não importa somente para o desenvolvimento de vínculo com certas obras, como é a partir desta que eu consigo tecer qualquer comentário e atribuir qualquer sentido, a tudo que vejo.
O documentário Eu Moro em Qualquer Lugar mostra um Rio de Janeiro silencioso, enquanto os relatos diante das câmeras são barulhentos, de tão dolorosos. O filme se constrói a partir de imagens de pessoas em situação de rua, em planos abertos da cidade, alternadas com relatos em planos médios e fechados, de mulheres que estão ou estiveram em situação de rua e de profissionais, que desempenham atividades voltadas para essa população, como psicólogas, assistentes sociais, defensoras e médicas.
O resultado disso está longe de ser inventivo em termos de forma, até porque não há muito o que ser inventado aqui. Em confluência com a temática séria a qual aborda, o documentário mantém seu caráter muito realista e sóbrio, típico dos documentários mais voltados à raiz jornalística do gênero cinematográfico, com fotografia crua e câmera estática. Esses aspectos colocam como foco, portanto, o que de fato mais importa aqui: ouvir essas mulheres. É dar voz apenas àquelas que tanto sofreram e ainda sofrem com as inúmeras formas de violência que a situação de rua e vulnerabilidade que vem com isso proporciona.
Em certa medida o filme me lembrou o maravilhoso clássico do cinema nacional, Jogo de Cena do Eduardo Coutinho. Talvez não exatamente pela forma, mas pela potência dos relatos das mulheres, que embora estejam em situação de maior vulnerabilidade que a grande maioria das que participam do filme de Coutinho, se encontram sob as mesmas amarras e julgamentos de uma mesma sociedade machista, misógina, racista, transfóbica. O que me faz perceber, ainda, que o que a socióloga do longa diz é verdade: pessoas em situação de rua não estão à margem da sociedade, elas continuam na sociedade.
Assim, é fácil perceber que o modus operandi da sociedade, patriarcal, racista e transfóbica, também se repete em um local onde o Estado pode até não alcançar, mas a violência e a ausência de direitos alcança. Da pobreza menstrual à dependência química, da violência sexual à ausência de acompanhamento médico para mulheres grávidas, essas são as questões sociais que não nos permitimos ver enquanto sociedade, pois o higienismo é uma forma mais simples de lidar do que discutir políticas públicas que alcancem essas pessoas tão maculadas pela desumanidade.
As políticas que reproduzem a aporofobia, como a arquitetura hostil e as internações compulsórias, parecem ainda mais dolorosas a cada relato, a cada palavra. Eu Moro em Qualquer Lugar é um filme difícil de assistir, não tem como negar. Muitas vezes eu tive que tomar um ar e retomar, pois é impossível conter a emoção. Alguns são até mesmo inacreditáveis, de revirar o estômago. De doer o coração.
Ultimamente tornou-se quase uma regra dizer que filmes não devem ser necessários a nada e que a arte, na verdade, não veio para ser subserviente ao social, algo que em parte eu concordo. Em parte porque aqui, esse documentário, especialmente em um país que vivenciou a extrema-direita e tem visto a ascensão do pensamento fascista, é absolutamente necessário.
O Cinema, assim como é arte, é também uma lente para ver o mundo e conhecer outras realidades. O Cinema também tem um caráter institucional, especialmente o documentário. E só através do conhecimento é que podemos confrontar questões, debater ideias. Entrar em contato com a situação dessas mulheres, divulgar isso, expor essa vulnerabilidade e esses relatos, é tentar captar a atenção de pessoas múltiplas para problemas diários de mulheres no Brasil e isso é fundamental. Eu Moro em Qualquer Lugar é uma daquelas obras que merecem ser vistas, principalmente porque essas mulheres merecem ser escutadas.”