
Melissa Almeida, do Arte como Lar, será uma das críticas da edição 46 do Festival Guarnicê de Cinema. Ela produzirá as resenhas dos seis longas nacionais que compõem a programação. Neste primeiro texto, ela avalia o filme “Praia do Silêncio”, de Francisco Garcia. Confira a crítica:
“Praia do Silêncio é sobretudo um filme sobre falta, perda e abandono. As primeiras imagens nos mostram o grito de uma filha em silêncio, mudo, contido e carregado de muitas coisas não ditas. A obra de Francisco Garcia acompanha os dias apáticos de um professor aposentado que decide mudar radicalmente de vida e se muda para um trailer isolado. Sua vida se resume a andar pela praia e por trilhas da mata, além de manter contato esporádico com um amigo da região. Vinte anos depois de ter abandonado a mulher e sua filha com deficiência auditiva, a imagem da filha volta como uma presença silenciosa para assombrá-lo.
No decorrer das cenas, cartas enviadas ao longo de quinze anos são narradas pela mãe solo que busca incessantemente entender o que levou o companheiro a abandoná-la com sua filha. Nas cartas, a ex-mulher fala sobre dores e dúvidas que perduraram depois da separação, da saúde da filha e de cenários políticos atuais, como o fim da União Soviética e o Brasil de FHC e Lula.
Cineastas distribuem pontos de interesse pelo quadro fílmico, oferecendo muitas pistas para guiar a nossa atenção. Um dos elementos de maior destaque na obra de no filme são as composições belíssimas e contemplativas da imagem, nas quais o diretor utiliza bastante o plano aberto em um ponto de vista onde os personagens ficam minúsculos. Algumas composições traduzem a apatia, desinteresse e indiferença do ex professor na vida que leva, como na cena em que um grupo de homens tenta subir um barco morro acima e o diretor enquadra o personagem filmando no canto inferior do quadro.
Enquadramento traduz a indiferença do personagem em Praia do Silêncio (2022)
Um ponto interessante a ser observado é o uso do desequilíbrio na composição, em diálogo com a falta, com o vazio. A falta que o pai deixou na filha e o vazio que cresceu com ela: “por muitos anos eu procurei você (…). Eu sou sua filha. Você não é meu pai.” – trecho da carta comovente da filha lida em voz-over no final do longa. Muitas composições da imagem fílmica indicam a falta de algo, ou de alguém mais especificamente: cadeiras vazias e um pequeno barco com um espaço não preenchido.
Planos não equilibrados em Praia do Silêncio (2022)
A presença da filha se resume a um espectro. Sua presença silenciosa chega de forma gradativa em uma traseira de caminhonete e logo acampa na praia. A presença dela é criada pelos pensamentos, sentimentos e, quem sabe, arrependimentos que o pai ausente carrega. Ele a procura, a segue, e aos poucos ela chega no seu trailer e vai tomando conta do espaço e dos seus pensamentos, deitando para dormir na sua cama.
O pai ausente segue o espectro da filha em Praia do Silêncio (2022)
O reflexo parece ser um elemento de importância para o diretor. A primeira imagem do rosto do ex-professor é refletida em um espelho, recurso que Garcia explora algumas vezes, e quando ele vira para a câmera, a iluminação não permite que o vejamos nitidamente. O único momento de contato físico que o pai tem com a filha, um abraço, é refletido na água, que surge movimentada e vai se acalmando aos poucos, até conseguirmos ver com clareza. Talvez há uma busca de seu próprio reconhecimento como fugitivo da paternidade e de um sistema que não acredita mais.
Reflexos em Praia do Silêncio (2022)
Em diálogo com a cena inicial do grito silencioso e quase ensurdecedor da filha, há uma cena, já se encaminhando para o final do enredo, em que o pai fala com ela, talvez explicando o que aconteceu, talvez falando coisas sem importância, talvez desabafando sobre suas escolhas. Assim como a filha, nunca saberemos, pois as palavras são silenciadas por uma trilha sonora melancólica. As palavras que nunca serão ouvidas, são ditas em silêncio, na praia.
Gritos e palavras em silêncio em Praia do Silêncio (2022)
Praia do silêncio é um filme para ser contemplado, tanto visualmente, quanto nos temas que aborda. É uma obra que nos traz temas como o privilégio masculino de decidir deixar a paternidade, a dor de uma mãe solo, a descrença nos sistemas e na sociedade, e a lacuna que a ausência de alguém pode deixar.”
*Melissa Almeida é mestra em Design e Arquiteta e Urbanista. Pesquisa o papel da arquitetura e do design na linguagem do cinema. Idealizadora do “Arte como Lar”, plataforma onde analisa e reflete sobre obras cinematográficas do ponto de vista da arquitetura e do urbanismo, entre outras artes. Atua como arquiteta e diretora de arte com ênfase no projeto de cenários na produção cinematográfica.