Melissa Almeida, do Arte como Lar, será uma das críticas da edição 46 do Festival Guarnicê de Cinema. Ela produzirá as resenhas dos seis longas nacionais que compõem a programação. Aqui, ela avalia o filme “Rumo”, de Bruno Victor e Marcus Azevedo, em exibição hoje (12) no Teatro João do Vale (Rua da Estrela, 283) às 19h50. A obra também ficará disponível de modo virtual a partir das 17h30 até às 18h de terça-feira (13).
O Festival Guarnicê de Cinema
Quarto mais longevo festival de cinema do país, o Guarnicê celebra o audiovisual maranhense e nacional há 46 anos. Promovido pela Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), o festival ocorre entre os dias 09 e 16 de junho. O Guarnicê tem patrocínio da Equatorial Energia, Museu da Memória Audiovisual do Maranhão(MAVAM) e do Governo Federal por meio do Banco do Nordeste.
Conta também com o apoio da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão (ALEMA), Fundação Sousândrade, Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), Eduplay, Secretaria de Estado da Educação (SEDUC), Centro Cultural do Ministério Público, TV UFMA, Rádio Universidade, Secretaria Municipal de Educação (SEMED), SESC, Associação Maranhense de Desenvolvedores de Jogos, Bulldog, Gráfica A5, Mar Doce, Teatro João do Vale e Teatro Arthur Azevedo.
Confira a crítica:
“Documentário e ficção são diferenciados por Nichols a partir do grau em que a história corresponde a situações, acontecimentos, e pessoas reais versus o grau em que ela é principalmente fruto da invenção do cineasta. A voz suprema do Blues (2020), por exemplo, não é uma história contada por Ma Rainey ou por outras pessoas que fizeram parte da sua história, mas uma representação imaginativa e simbólica de parte da sua vida contada pelo diretor George C. Wolfe, embora fortemente baseada em fatos históricos. Nichols chama isso de tratamento criativo da realidade. E é aqui que se encontra uma das maiores belezas de Rumo, dirigido por Bruno Victor e Marcus Azevedo.
O filme conta a história da implementação das cotas raciais na Universidade de Brasília, a primeira federal do Brasil a implementar a política, a partir de vozes de alunos negros que acessaram a universidade a partir dela. Em paralelo a isso, conta também a partir da história de Samuel, que, junto com a sua mãe Leni, anseiam entrar na universidade. O longa intercala as cenas entre o formato documental com entrevistas, o formato ficcional com cenas da luta diária dos personagens e uma narrativa experimental protagonizada por um objeto carregado de significados. À medida que tomamos conhecimento dos acontecimentos pelas vozes dos alunos que hoje são professores e artistas, acompanhamos o esforço e preocupação de Leni em colocar o filho na universidade. Num determinado momento do filme, documentário e ficção se conectam na quebra da quarta parede, quando os personagens olham pra câmera e contam suas verdadeiras histórias, entrelaçadas, espelhadas e conectadas com as da ficção. A obra de Bruno e Marcus conta uma história verdadeira com personagens verdadeiros, com vozes e interpretações de quem viveu. Além das vozes, o olhar e o tratamento criativo da realidade proposta pelos diretores também expressam suas próprias vozes, que entraram na Unb através das cotas raciais.
A narrativa experimental carrega muitos simbolismos, principalmente pelo uso de uma tv, na qual os “personagens” Samuel e Leni assistem a vídeos que se caracterizam como lembranças. A exploração de forma intencional dos objetos em cena pode conferir a ele um significado suplementar. O uso desse objeto dialoga com a fala da artísta plástica Lia Maria, que conta sobre um momento muito duro, quando, durante a faculdade, atearam fogo no apartamento de dois estudantes negros: “(…) o que tá acontecendo? Nosso corpo não vale nada, nossa vida não vale nada? Tão queimando a gente? (…) É mais que uma invisibilidade não te olharem nos olhos, não te perceberem em sala de aula, de não te escolherem para um grupo de pesquisa, de não te selecionarem pro PIBIC, de não te chamarem pra uma festa (…) é sobre te tirarem de cena.” Bruno e Marcos colocam de volta essas pessoas em cena através do uso literal de cenas passadas na tv.
Uso da TV na narrativa experimental em Rumo (2022)
Uso da TV na narrativa experimental em Rumo (2022)
A composição das imagens desenhadas para o filme chamam atenção pelo uso do figurino em harmonia com espaços e outros elementos cênicos. Em uma cena poética, Leni aparece chorando e gritando silenciosamente para que o seu filho seja visto, notado. Os diretores desenham a cena em uma escada com um material escuro, e em seus braços Lina segura Samuel com uma roupa branca, contrastando com o cenário, externando os sentimentos de Lina enquanto a indiferença caracteriza as pessoas que passam ao seu redor.
Composição da imagem em Rumo (2022)
Outras composições interessantes separam a forma ficcional da forma experimental. Na narrativa em que Samuel e Lina lutam para entrar na universidade, seus figurinos se mesclam com o cenário, causando pouco contraste, enfatizando suas invisibilidades frente a um mundo que não oferece as mesmas oportunidades a brancos e outros tipos de privilegiados.
Figurino em harmonia com o cenário em Rumo (2022)
Em contraposição a esse apagamento, na narrativa experimental, espaço onde esses personagens ocupam um lugar que antes não podiam, seus figurinos ganham cores que se contrastam com o cenário, como o azul e o branco.
Figurino em contraste com o cenário em Rumo (2022)
Rumo é um filme necessário para compreender a história da implantação de cotas raciais no Brasil. Mas não somente isso, é necessário também para ouvirmos dos principais envolvidos nesse marco histórico. Ouvimos vozes através da documentação, da experimentação e da composição da imagem.”